Francisco Nuk | A Forma Não Cumpre a Função
Data: 04/09/2021
Foi árvore, viveu, gerou energia, ganhou tempo, virou madeira. Isso tudo antes de ser armário. Alguém dispôs de força e intelecto – carregou a madeira, desenhou, criou – fez armário. Para quê? O que impulsiona artesãos, designers e artistas a construírem um objeto? A necessidade de organizar, de significar, de validar, de utilizar. Utilizar ou tornar útil, pes- soalizar ou objetificar, os fins nem sempre justificam os meios. O armário é aquilo que está no meio, não é o resultado da construção, é quando o artesão talha o tempo, desconstrói-se, cria. Caminha rumo a arte.
Nessa trilha, mais semântica do que prática, funde limites, prospecta possibilidades, relativiza, mas nunca trai. Volta-se ao basilar, ao essencial, portanto, àquilo que não tem forma. Não por uma incompatibilidade modular ou modelar, e sim para captar o fundamental: as coisas são amorfas, complexas e ambíguas; os indivíduos as significam e as coletividades as acolhem. Cada obra é impar.
A possibilidade de representação do real é sempre um desafio. A articulação das formas manifesta o conteúdo interior. Conscientemente ou não, não é a forma o elemento essencial, mas o conteúdo. Esse se delimita nas disputas narrativas, perspectivas e lógicas acerca da multiplicidade do presente. Tanto a utilidade quanto a inutilidade refletem um processo incessante de seleção e reconstrução de fragmentos de um tempo. Aqui, obra implode a racionalidade objetiva, convulsiona a logica utilitarista. O armário é a trincheira entre o indivíduo e a coletividade, ainda que um não exista sem o outro. Afinal, a construção da individualidade é uma obra de arte. E ainda que uma mesma mão confeccionasse vários armários, cada um teria suas especificidades e assumiria um tipo de função em um determinado cosmo.
O objeto passa de criatura inanimada a ser animado. O tempo é a sua unidade de vida, assim como dos seres vivos. Posto isso, o ser armário caminha pelas mesmas veredas sinuosas que o homem, e de tão próximos que são, por vezes, se confundem. É como se o armário, depois de feito, acumulasse cada vez mais vida, ao passo que o homem, quanto mais vida, mais se “armária”. Deste, todos esperam determinadas funcionalidades: depositar objetos, ser um espaço protegido, ser belo ou, no mínimo, quando austero, robusto e seguro. No entanto, a contrassenso forjam-se seres libertários, que extra- polam as proporções impostas pela perspectiva, que não se destinam a nenhuma funcionalidade previamente concebida. O homem vive entre mil facetas que moldam o seu existir. Dele espera-se e determina-se uma conduta social, uma ética e uma moral baseadas nos “bons preceitos”, um tipo padrão.
Não obstante, a humanidade move-se pelas mãos daqueles que em um arroubo de menoscabo, optam por fazer aquilo que lhes convém, portar-se como mais lhes apraz, guardando as morais e os costumes em uma gaveta, inútil, e transfigurando-se em um armário de tempo. Ao implodir as linhas da forma e da formalidade, altera-se o equilíbrio vigente. Amplia-se o horizonte de possibilidades, constroem-se novos arranjos. De um passo escancara-se toda a falácia e irracionalidade por trás da produtividade utilitarista. Por qual motivo uma maioria vive com afinco os ditames do útil, trocando tempo de vida por papel moeda, perdendo a capacidade de observar e sentir a plenitude da arte? Como caminhamos para que o artista ficasse preso em seu próprio armário? Quando aceitaremos que sair do armário é não apenas encontrar a liberdade, mas também fruir dos corpos e mentes, romper com a servidão e o calabouço da eficiência, do rendimento, do egoísmo?
Por isso precisamos do inútil. Sem préstimo, desnecessário, es- cusado. Linhas retas que são em realidade curvas de raio infinito. O inconsciente da imaginação transcende a serventia do trabalho produtivo. O útil será sempre desafiado, e como se fosse um ser plástico, molda-se a partir da força imposta por novas perspecti- vas. A inutilidade não deve ser interpretada como o antagônico, mas sim como a vontade propulsora da transformação. Explorar os limites do útil até o inútil, para que assim se torne útil mais uma vez. E como um efeito dominó caminhamos na concepção: tempo, espaço e função.
Esse todo pré-conceitual nada mais é do que a utilidade canalizada em forma, acrítica, temerária da grandeza que traz o inútil. Delimitando o quão frágil é o equilíbrio social e o quanto este equilíbrio está apoiado em inúmeros desiquilíbrios. Um alicerce vulnerável para uma pirâmide excludente e decadente. Esse efeito expõe os limites da convencionalidade evidenciando que a inutilidade é a rachadura, a fronteira imaginária que nos separa da luz. Escutemos o inútil. Dele um dia ouvi: e se a base da pirâmide cansasse, por um dia, de suportar o seu peso? E se, a raciona- lidade de sua existência não implicasse utilidade? E se, por um momento que fosse ela se atentasse à beleza e complexidade
do inútil?
Abririam todas as gavetas, fundiriam todas as arquiteturas, altera- riam todas as funções, aproximando o sublime do ordinário.
Ciro C. de Abreu
Bacharel em história - UFMG
Mestre em musicologia - Sorbonne Université